2024-02-20
Prof. Dra. Cláudia Loureiro
@prof.dra.claudia_loureiro
Assistente Graduada, Serviço de Pneumologia, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Professora Auxiliar Convidada, Faculty of Medicine of the University of Coimbra
Competência em Medicina do Sono
Pneumologista, Sonologista, Medicina estética e antienvelhecimento
Fala-se cada vez mais da importância do sono e das vantagens que uma noite bem dormida - ou muitas, idealmente! – podem trazer à nossa vida.
Começo, precisamente, por lhe perguntar, que vantagens são estas e a real importância do sono?
O sono é essencial para a saúde física e mental e regula praticamente todos os sistemas do nosso organismo. Tem um papel primordial no envelhecimento saudável, uma vez que regula os sistemas biológicos fundamentais como o da regulação térmica, o da regulação hormonal, o de defesa do nosso organismo, o do metabolismo e da “limpeza” de toxinas cerebrais. Para além disso, interfere com inúmeros processos neuronais como a aprendizagem, a criação de memória e a regulação emocional. Portanto, quando dormimos mal, o nosso desempenho durante o dia vai estar prejudicado, muitas vezes acusando fadiga, alteração do humor, irritabilidade, dores de cabeça, aumento de apetite e até alterações cognitivas como a velocidade ou capacidade de realizar tarefas ou tomar decisões.
Quais os fatores que podem prejudicar o sono ou a falta dele?
Um sono adequado significa que a pessoa consegue adormecer e acordar sem dificuldade, não tem fragmentação do seu sono, tem uma duração e um horário adequado e acorda revigorado.
Um fator que recentemente tem sido relacionado com a má qualidade do sono é a chamada “procrastinação vingativa da hora de dormir” (tradução de “revenge bedtime procrastination”, uma consequência do ritmo de vida da sociedade moderna. Com toda a certeza, vários leitores se revêm nesta situação: esta procrastinação (adiar) resulta da vontade em arranjar tempo de lazer, mesmo que resulta em tempo de sono insuficiente.
No fundo, uma maneira de compensar a falta de tempo livre durante um dia de trabalho e tarefas ou responsabilidades stressantes.
Outro fator que frequentemente pode implicar com a qualidade do sono é a exposição à luz. De duas formas: ou por deficiente exposição à luz solar, sobretudo no período da manhã, ou por excesso de exposição, sobretudo à luz brilhante dos écrans ao final do dia, na medida em que essa exposição inibe a produção da hormona que sinaliza a hora de dormir (a melatonina). Isto, associado ao uso excessivo das redes sociais e dos canais de comunicação, que condiciona alguma ansiedade na hora de dormir, sobretudo nos mais jovens, por exemplo, com receio de perderem alguma novidade de última hora, (conhecido como síndrome FOMO, do inglês “fear of missing out”) o que contribui frequentemente para a má qualidade do sono.
Depois temos os restantes fatores, de senso comum, como o consumo de álcool, tabaco e cafeína. O seu consumo, sobretudo no período da noite, diminui a qualidade do sono, e devem por isso ser evitados. Por exemplo, com o álcool, apesar de haver a noção de que se adormece mais rápido, a qualidade do sono fica muito comprometida, com grandes disrupções durante os ciclos de sono. Em relação à cafeína, o melhor mesmo é limitar o seu consumo até à hora de almoço. As refeições noturnas pesadas, sobretudo quando incluem alimentos picantes ou com elevada quantidade de gordura, também podem constituir um elemento de perturbação do sono, bem como o ambiente e a temperatura desadequada do quarto, que deve estar escuro, fresco e silencioso.
E que consequências podem advir do facto de não termos uma boa rotina de sono?
Quando pergunta sobre a ausência de uma boa rotina do sono, estamos numa situação que resulta em tempo de sono pouco eficiente ou em privação de sono. Na verdade a questão é: o que é que não fica comprometido quando não dormimos bem?
Para além de ficarmos menos ativos durante o dia, com menor capacidade de decisão, humor mais lábil e pior capacidade de concentração, a saúde física e mental ficam afetadas de forma global.
Uma das mais nefastas consequências é o aumento de peso e a maior probabilidade para doenças metabólicas como a diabetes e a obesidade: é um facto que a privação de sono aumenta a vontade de comer e sobretudo de comer “mal”, com predileção por alimentos obesogénicos como os açúcares, carbohidratos e snacks salgados. E isto tem uma fundamentação científica: por um lado, o sono afeta a produção das hormonas que regulam o apetite, tendo como efeito net o aumento da fome; por outro lado, com a falta de sono, a área do cérebro responsável por controlar os nossos impulsos mais primários (o córtex pré-frontal), fica menos ativo, em detrimento de outras áreas cerebrais digamos que…mais “primitivas”.
Menos falado é o impacto que a qualidade do sono (ou melhor, a sua ausência) tem na competência reprodutiva. A falta de sono diminui significativamente os níveis de testosterona no homem e interfere negativamente com a regulação das hormonas femininas. Ora, nos dias de hoje este é um tema de grande relevância, uma vez que a tendência é para a gestação acontecer em idades mais tardias do que as biologicamente favoráveis.
As doenças cardiovasculares, como a hipertensão e a doença coronária, também são mais frequentes em pessoas privadas de sono e, naturalmente, estão potenciadas as doenças mentais, incluindo a depressão.
De notar que é durante o sono que o sistema de “limpeza” do cérebro (o sistema glinfático) consegue eliminar os detritos neurotóxicos e, portanto, as demências também entram nesta relação.
Brinca-se muito com a expressão “sono de beleza”, mas, para além de prejudicar a nossa saúde, dormir mal traz também malefícios à nossa pele… Quer explicar melhor?
A expressão “sono de beleza” tem a sua relevância e isso tem sido comprovado por estudos científicos interessantes. Num estudo recente, no qual foram avaliados, em indivíduos com restrição de sono, vários parâmetros de qualidade da pele (como sejam secreção sebácea, perda de água transepidérmica, propriedades viscoelásticas da pele, pH, coloração, descamação e oxidação), verificou-se que a restrição de sono está associada a alterações significativas na maior parte destes parâmetros. Também é conhecida a influência positiva que o sono tem na capacidade de regeneração celular, pela regulação circadiana de muitos genes ligados ao envelhecimento. Do ponto de vista hormonal, a secreção durante o sono de hormonas como a melatonina, o cortisol e a hormona de crescimento, contribuem para a ação anti-inflamatória e de regeneração da pele.
Vários estudos científicos mostram que as pessoas privadas de sono são percecionadas pelos outros como menos atrativas, mais fatigadas e menos saudáveis em relação a alguém que tem um sono reparador.
As alterações na aparência facial estão com frequência relacionadas com o olhar e o sorriso, duas poderosas ferramentas no que diz respeito à atratividade social: quando comparadas com pessoas com boa qualidade de sono, quem sofre de privação de sono tem olhos mais edemaciados ou vermelhos, olheiras escuras, palidez cutânea e mais rugas que contribuem para a queda dos cantos da boca dando um ar mais triste. A própria capacidade de defesa da pele fica comprometida e dificulta, por exemplo, o processo de cicatrização, para além de contribuir para um aspeto de irregularidade cutânea, muitas vezes com pigmentação.
Por isso se diz, com graça: “dorme pelo menos 8 horas de sono de beleza, 9 horas se fores feio…”.
Para quem durante um largo período de tempo dormiu pouco, mudar a sua rotina poderá salvar erros do passado?
A chamada “dívida de sono”, quando é de longo prazo, não se recupera da mesma forma do que quando temos uma noite mal dormida. Quando ultrapassa as 2-4 semanas demora, pelo menos, uma semana com boa qualidade de sono para recuperar dos efeitos adversos, físicos e mentais. Naturalmente que a mudança de rotina é fundamental para ir saldando essa dívida, mas leva o seu tempo, até porque muitas vezes esses antecedentes se vão associar a algum tipo de insónia que pode necessitar uma intervenção mais especializada.
Muitas vezes, o que acontece é que temos sono, mas não conseguimos dormir… O que fazer nestes casos? A que é que pode estar associado?
A isso chama-se insónia inicial, que é das queixas de sono mais comuns. Mas ela também pode acontecer durante a noite, com despertares e dificuldade em voltar a adormecer, ou tardiamente, acordando demasiado cedo sem conseguir voltar a adormecer. A maior parte dos casos de insónia estão associados a más rotinas de sono, stress, condições médicas, doenças mentais como a depressão, algumas medicações ou a abuso de álcool.
Quando o problema são maus hábitos de sono, o primeiro passo é instituir uma boa rotina de sono, que explico mais adiante. Para além disso, no caso específico da insónia inicial, se estiver mais do que 20 minutos na cama sem adormecer, deve levantar-se e sair do quarto, para não criar uma conexão mental entre estar na cama e a frustração de não adormecer. Aí, faça uma atividade relaxante, não verifique constantemente as horas e não se foque mentalmente na necessidade de ter de adormecer.
Se for uma situação frequente, deve fazer uma diário de sono para tentar identificar fatores que possam estar a perturbar o sono. Não sendo suficiente para resolver o problema, antes de avançar para qualquer ajuda farmacológica procure um médico com competência em medicina do sono.
Os portugueses, de uma maneira geral, dormem bem?
Definitivamente não, os portugueses dormem mal e é o país europeu onde se dorme menos. Segundo dados da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, 46% dos portugueses com idade igual ou superior a 25 anos dormem menos de 6 horas por dia, 21% dizem que demoram mais de 30 minutos para adormecer, 32% consideram ter um mau sono e 40% reportam dificuldade em manter-se acordados durante a condução e outras atividades diárias.
Há uns anos, associávamos este problema às pessoas com mais idade. Atualmente, já não é tanto assim? Os nossos jovens dormem bem e o número de horas suficientes?
Nos idosos há uma dessincronização do ritmo circadiano acontecendo muitas vezes um avanço na fase do sono, ou seja, tendem a dormir mais cedo para além de terem uma média de tempo total de sono de 7 a 8h, ligeiramente inferior do que em idades mais jovens. Depois existe uma série de fatores que pode contribuir para uma má qualidade de sono nesta faixa etária, como doenças crónicas, dor crónica, efeitos secundários de medicação. No caso dos jovens, o que se verifica, é que o sono mais tardio, própria desta faixa etária propicia hábitos noturnos como o de estudar à noite sono, aliada ao seu estilo de vida atual, muito ligada às redes sociais com atividade quase frenética e, não raras vezes às circunstancias laborais familiares e rotinas sociais, fazem com que se vá acumulando um défice de tempo de sono que pode trazer prejuízos a curto e a longo prazo. Quer a nível de desempenho escolar/profissional, quer a nível físico e de saúde mental.
O número de horas de descanso variam consoante a faixa etária. Pode referir, aproximadamente, o número de horas que devemos dormir, nas diferentes fases da nossa vida?
O tempo total de sono, as fases de sono e o ritmo circadiano não é o mesmo em todas as faixas etárias. Assim como não é igual entre homens e mulheres traduzindo-se em menor tempo e qualidade de sono para o género feminino, em relação com a regulação hormonal.
Com a idade, o tempo de sono diminui substancialmente durante o primeiro ano de vida e o tipo de sono (tecnicamente, as fases de sono) também é bastante diferente, sendo que a sua regulação vai adquirindo consistência durante a infância. No período da adolescência há o que chamamos de um atraso de fase, ou seja, menor pressão de sono e portanto os adolescentes tendem a ter sono mais tarde (o que pode ser um problema pelos horários escolares que têm que cumprir, na medida em que o tempo de sono fica reduzido). Nos idosos acontece o inverso, um avanço de fase (por vários motivos) e por isso tendem a dormir mais cedo, o que também pode resultar em algum desajuste social.
Salvaguardando que a necessidade de sono tem uma variação individual, em média, os recém nascidos devem dormir entre 14 a 17 h, na pequena infância entre 11 e 14h, na idade pré-escolar entre 10 e 13h, no primeiro ciclo entre 9 e 11h, os adolescentes entre 8 a 10h, os adultos entre 7 e 9h e os idosos entre 7 a 8h.
O que podemos fazer para ter uma boa noite de sono? Existem alguns truques?
São truques muito simples, como ter um padrão regular de sono, que inclui o mesmo horário de deitar e levantar, mesmo durante o fim-de-semana, e evitar sestas prolongadas durante o dia.
Na verdade, a preparação de uma boa noite de sono começa durante o dia: uma sugestão é expor-se à luz solar durante a manhã (se não for possível a luz natural existe a opção da fototerapia), arranjar tempo para fazer exercício (mas não o fazer perto da hora de dormir) e monitorizar os consumos de cafeína, sobretudo a partir da tarde (incluindo alguns chás ou bebidas refrigeradas). O consumo de álcool e de tabaco também diminui a qualidade do sono e deve evitar-se o seu consumo à noite bem como fazer refeições noturnas com alimentos picantes ou elevada quantidade de gordura.
Ter uma rotina adequada e consistente antes de ir para a cama é outra atitude que pode aumentar a qualidade do sono. Trinta minutos antes devemos ter um período de relaxamento com atividades como leitura, alongamentos de baixo impacto ou ouvir música relaxante. A exposição a luz, sobretudo a luz brilhante, deve ser evitada de forma a não inibir a produção da melatonina, a hormona que promove o sono, devendo, por isso “desligar-se” dos aparelhos eletrónicos.
Criar um quarto de dormir que induza o sono também é fundamental e implica maximizar o conforto e minimizar distrações. Para isso tem de ter um colchão e uma almofada de acordo com a sua preferência e roupa de cama que mantenha uma temperatura confortável durante a noite. Deve evitar luz no quarto bem como barulho (se não o conseguir eliminar, pode mascará-lo com barulho branco, que atualmente se pode encontrar em várias apps, ideal para disfarçar ou abafar outros sons do ambiente, como o barulho de carros ou ladrar de cães).
A temperatura do quarto é outro fator importante e deve rondar os 19º.
E quando não conseguimos solucionar de todo esta situação, a quem devemos recorrer?
Nesse caso deve-se procurar um médico com competência em Medicina do Sono que irá avaliar a complexidade da situação, orientar para os exames complementares de diagnóstico que forem necessários para identificar qual a causa da perturbação do sono e orientar para as terapêuticas adequadas. Por exemplo, se a intervenção cognitiva e comportamental é determinante no tratamento da insónia, já os distúrbios respiratórios do sono, sendo o mais frequente deles a apneia obstrutiva, exige outro tipo de tratamentos com aparelhos específicos.